quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Let It Be Me




(...) Esgota,

como um pássaro,
as canções

que tens na garganta.

Canta.

Canta para conservar

a ilusão
de festa

e de vitória.

Talvez as canções

adormeçam as feras
que esperam devorar

o pássaro.

Desde que nasceste
não és mais

que um vôo no tempo.

Rumo ao céu?

Que importa a rota?

Voa e canta
enquanto resistirem

tuas asas...

o vôo
[Menotti del Pichia]


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Ela havia feito algo
que seu pai não aprovava,
embora ninguém mais se
lembrasse do que havia sido.

Seu pai, no entanto,
a havia arrastado
até os penhascos,
atirando-a ao mar.

Lá, os peixes
devoraram sua carne
e arrancaram seus olhos.

Enquanto jazia no fundo do mar,
seu esqueleto rolou muitas vezes
com as correntes.

Um dia um pescador veio pescar.


Bem, em verdade, em outros tempos,
muitos costumavam vir a essa baía pescar.

Esse pescador, porém,
estava afastado de sua colônia
e não sabia que os pescadores da região
não trabalhavam ali sob a alegação
de que a enseada era mal-assombrada.


O anzol do pescador
foi descendo pela água abaixo
e se prendeu - logo em quê! -
nos ossos das costelas
da Mulher-Esqueleto.


O pescador pensou:
"Oba, agora peguei um grande de verdade!!!
Agora peguei um mesmo!".

Na sua imaginação,
ele já via quantas pessoas
esse peixe enorme iria alimentar,
quanto tempo sua carne duraria,
quanto tempo ele estaria
livre da obrigação de pescar.

E enquanto ele lutava
com esse enorme peso
na ponta do anzol,
o mar se encapelou
com uma espuma agitada,
e o caiaque empinava e sacudia
porque aquela que estava lá embaixo
lutava para se soltar.


E quanto mais ela lutava,
tanto mais ela se enredava na linha.


Não importava o que fizesse,
ela estava sendo inexoravelmente
arrastada para a superfície,
puxada pelos ossos
das próprias costelas.



O pescador havia se voltado
para recolher a rede e, por isso,
não viu a cabeça calva
surgir acima das ondas;
não viu os pequenos corais
nas órbitas do crânio;
não viu os crustáceos
nos velhos dentes de marfim.


Quando ele se voltou
com a rede nas mãos,
o esqueleto inteiro,
no estado em que estava,
já havia chegado à superfície
e caía suspenso
da extremidade do caiaque
pelos dentes incisivos.

- Agh! - gritou o homem,
e seu coração afundou até os joelhos,
seus olhos se esconderam apavorados
no fundo da cabeça
e suas orelhas arderam
num vermelho forte.

- Agh! - berrou ele,
soltando-a da proa com o remo
e começando a remar
loucamente na direção da terra.

Sem perceber que ela
ainda estava emaranhada na sua linha,
ele ficou ainda mais assustado,
pois ela parecia estar em pé,
a persegui-lo o tempo todo até a praia.


Não importava de que jeito
ele desviasse o caiaque,
ela continuava ali atrás.

Sua respiração
formava nuvens de vapor sobre a água,
e seus braços se agitavam
como se quisessem agarrá-lo
para levá-lo para as profundezas.


- Aaaagggggghhhhh! - uivava ele,
quando o caiaque encalhou na praia.

De um salto ele estava fora da embarcação
e saía correndo agarrado à vara de pescar.


E o cadáver branco da Mulher-Esqueleto,
ainda preso à linha,
vinha aos solavancos bem atrás dele.

Ele correu pelas pedras,
e ela o acompanhou.

Ele atravessou a tundra gelada,
e ela não se distanciou.

Ele passou por cima da carne
que havia deixado a secar,
rachando-a em pedaços
com as passadas dos seus mukluks.


O tempo todo ela continuou atrás dele
- na verdade, até pegou
um pedaço do peixe congelado
enquanto era arrastada.

E logo começou a comer,
porque há muito tempo,
muito tempo não se saciava.

Finalmente, o homem chegou ao seu iglu,
enfiou-se direto no túnel e, de quatro,
engatinhou de qualquer jeito para dentro.


Ofegante e soluçante,
ele ficou ali deitado no escuro,
com o coração parecendo um tambor,
um tambor enorme.


Afinal, estava seguro,
ah, tão seguro,
é seguro, graças aos deuses,
Raven, é, graças a Raven, é,
e também à todo-generosa Sedna,
em segurança, afinal.



Imagine quando ele acendeu
sua lamparina de óleo de baleia,
ali estava ela - aquilo -
jogada num monte no chão de neve,
com um calcanhar sobre um ombro,
um joelho preso nas costelas,
um pé por cima do cotovelo.


Mais tarde ele não saberia dizer
o que realmente aconteceu.

Talvez a luz tivesse
suavizado suas feições;
talvez fosse o fato
de ele ser um homem solitário.

Mas sua respiração
ganhou um quê de delicadeza.

Bem devagar, ele estendeu as mãos e,
falando baixinho como uma mãe
fala com o filho,
começou a soltá-la da linha de pescar.


Ele primeiro soltou os dedos dos pés,
depois os tornozelos.

Trabalhou sem parar noite adentro,
até cobri-la de peles para aquecê-la,
já que os ossos da Mulher-Esqueleto
eram iguaizinhos aos de um ser humano.


Ele procurou sua pederneira
na bainha de couro
e usou um pouco do próprio cabelo
para acender mais um foguinho.


Ficou olhando para ela
de vez em quando,
enquanto passava óleo
na preciosa madeira
de sua vara de pescar e
enrolava novamente
sua linha de seda.


E ela, no meio das peles,
não pronunciava palavra
- não tinha coragem -
para que o caçador
não a levasse lá para fora
e a jogasse lá embaixo nas pedras,
quebrando totalmente seus ossos.

O homem começou a sentir sono,
enfiou-se nas peles de dormir
e logo estava sonhando.

Às vezes,
quando os seres humanos dormem,
acontece de uma lágrima escapar
dos olhos de quem sonha.


Nunca sabemos
que tipo de sonho provoca isso,
mas sabemos que
ou é um sonho de tristeza
ou de anseio.


E foi isso o que aconteceu com o homem.

A Mulher-Esqueleto
viu o brilho da lágrima à luz do fogo,
e de repente ela sentiu sede.

Aproximou-se do homem que dormia,
rangendo e retinindo,
e pôs a boca junto à lágrima.

Aquela única lágrima foi como um rio,
que ela bebeu, bebeu e bebeu
até saciar sua sede de tantos anos.

Enquanto estava deitada ao seu lado,
ela estendeu a mão
para dentro do homem que dormia
e retirou seu coração,
aquele tambor forte.


Sentou-se e começou a
batucar dos dois lados do coração:

Bom, Bomm!... Bom, Bomm!...

E enquanto
ela marcava o ritmo,
começou a cantar em voz alta.

E quanto mais cantava,
mais seu corpo se revestia de carne.

Ela cantou para ter cabelos,
olhos saudáveis
e mãos macias e gordas.

Ela cantou para reaver
seu dom de ser mulher
e ter seios suficientes para dar calor.

Ela cantou para ter sabedoria,
para reaprender a amar,
para ser inteira, íntegra
e verdadeira.

Quando estava pronta,
ela também cantou para despir
o homem que dormia
e se enfiou na cama de peles com ele,
a pele de um tocando a do outro.


Ela devolveu o grande tambor
- o coração -,
ao corpo dele,
e foi assim que acordaram,
abraçados um ao outro,
enredados na noite, juntos,
agora de outro jeito,
de um jeito bom e duradouro.

As pessoas que não conseguem se lembrar
de como aconteceu sua primeira desgraça,
dizem que ela e o pescador foram embora
e sempre foram alimentados
pelas criaturas que ela conheceu
na sua vida debaixo d'água.


As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem..."


~~A MULHER ESQUELETO~~

Uma lenda do povo inuit, do livro "Mulheres que Correm com os Lobos",
de Clarissa P. Estés (pgs. 168/171)


e é isso moça bonita

todos nós sempre guardamos bem guardados

os nossos esqueletos

não é?


1/2 beijo gelado

aNTONIocARLos


ah! Gosto

2o1o




Música : Rod Stewart & Jennifer Hudson - Let It Be Me

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