terça-feira, 25 de maio de 2010

O amor comeu






O amor comeu
meu nome,
minha identidade,
meu retrato.

O amor comeu
minha certidão de idade,
minha genealogia,
meu endereço.

O amor comeu
meus cartões de visita.

O amor veio e comeu
todos os papéis
onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu
minhas roupas,
meus lenços,
minhas camisas.

O amor comeu
metros e metros de gravatas.

O amor comeu
a medida de meus ternos,
o número de meus sapatos,
o tamanho de meus chapéus.

O amor comeu
minha altura,
meu peso,
a cor de meus olhos
e de meus cabelos.

O amor comeu
meus remédios,
minhas receitas médicas,
minhas dietas.

Comeu minhas aspirinas,
minhas ondas-curtas,
meus raios-X.

Comeu meus testes mentais,
meus exames de urina.

O amor comeu na estante
todos os meus livros de poesia.

Comeu em meus livros de prosa
as citações em verso.

Comeu no dicionário
as palavras que poderiam
se juntar em versos.

Faminto,
o amor devorou os utensílios de meu uso:
pente, navalha, escovas,
tesouras de unhas, canivete.

Faminto ainda,
o amor devorou o uso de meus utensílios:
meus banhos frios,
a ópera cantada no banheiro,
o aquecedor de água de fogo morto
mas que parecia uma usina.

O amor comeu
as frutas postas sobre a mesa.

Bebeu a água
dos copos e das quartinhas.

Comeu o pão
de propósito escondido.

Bebeu as lágrimas dos olhos que,
ninguém o sabia,
estavam cheios de água.

O amor voltou para comer
os papéis onde irrefletidamente
eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância,
de dedos sujos de tinta,
cabelo caindo nos olhos,
botinas nunca engraxadas.

O amor roeu o menino esquivo,
sempre nos cantos,
e que riscava os livros,
mordia o lápis,
andava na rua chutando pedras.

Roeu as conversas,
junto à bomba de gasolina do largo,
com os primos
que tudo sabiam sobre passarinhos,
sobre uma mulher,
sobre marcas de automóvel.

O amor comeu
meu Estado
e minha cidade.

Drenou a água morta dos mangues,
aboliu a maré.

Comeu os mangues
crespos e de folhas duras,
comeu o verde ácido
das plantas de cana
cobrindo os morros regulares,
cortados pelas barreiras vermelhas,
pelo trenzinho preto,
pelas chaminés.

Comeu o cheiro de cana cortada
e o cheiro de maresia.

Comeu até essas coisas
de que eu desesperava
por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias
ainda não anunciados nas folhinhas.

Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio,
os anos que as linhas de minha mão asseguravam.

Comeu o futuro grande atleta,
o futuro grande poeta.

Comeu as futuras viagens em volta da terra,
as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu
minha paz e minha guerra.

Meu dia e minha noite.

Meu inverno e meu verão.

Comeu meu silêncio,

minha dor de cabeça,

meu medo da morte...


by João Cabral de Melo Neto



e então é isso moça bonita
do sorriso de algodão doce
do amor que me comeu
a identidade
o juízo
e a força de vontade


em Maio
2o1o

antoniOCarlos


Música : Trocando em miúdos (Chico Buarque) Patricia Camin

Um comentário:

  1. É o amor quem come nosso ser interior ou somos nós que permitimos que tudo o que temos seja apagado? Seria mais produtivo REdesenhar, REescrever, REorganizar, REamar.... Quem sabe?

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