quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Fear of Flying...




Fear of Flying...



O que se passava
com meu casamento afinal?

Mesmo amando meu marido,
chegava aquele inevitável ano
em que trepar com ele
ficava tão insípido quanto queijo fundido:

saciante, engordativo até,
mas sem qualquer efeito
sobre as papilas gustativas,
sem travo agridoce,
sem perigo.

Quando o que se deseja
é um Camenbert bem maduro,
um raro queijo de cabra,
de sabor acentuado, cremoso, diabólico.

Eu não era contra o casamento.

Acreditava nele de verdade.

Era necessário
ter um bom companheiro
num mundo hostil,
uma pessoa a quem
ser fiel incondicionalmente,
uma pessoa que também
fosse fiel sempre.

Mas, e quanto a todos
aqueles outros anseios que,
após algum tempo,
o casamento não conseguia satisfazer?

A inquietação, o desejo,
o palpitar das entranhas,
o palpitar da vagina,
o anseio de ser preenchida,
de ser fodida por todos os orifícios,
a ânsia por champanhe seco
e beijos molhados,
pelo perfume de peônias
numa cobertura
em uma noite de junho,
pela luz no final do cais
em “Gatsby”...


Não essas coisas, na verdade
– porque era sabido
que os muito ricos
eram mais enfadonhos
do que nós outros - ,
mas o que elas evocavam.

O sardônico,
agridoce vocabulário
das canções de amor
de Cole Porter,
as letras tristes e sentimentais
de Rogers e Hart,
todas as tolices românticas
pelas quais suspira
metade de nosso coração
e das quais a outra metade
zomba cruelmente.

Ser mulher nos Estados Unidos.
Que perigo!

Crescia-se com os ouvidos
entupidos de anúncios
de cosméticos,
canções de amor,
colunas de conselheiros,
revistas masculinas,
mexericos de Holywood
e dilemas morais
ao nível de novelas de televisão.

Que litanias
a publicidade da boa vida
nos entoava!

Que curiosos catecismos!

“Cuide de seu traseiro”.
“Enrubesça, com se o quisesse”.
“Ames seus cabelos”.
“Quer um corpo melhor? Podemos consertar o seu”
“Aquele brilho em seu rosto deve vir dele, não de sua pele”.
“Você percorreu um longo caminho, benzinho”
“Como marcar pontos com todos os homens do Zodiaco”
“Os astros e você sempre sensual”
“Para um homem, Cutty Sark”
“Um diamante é para sempre”
“Se você esta preocupada com as duchas...”
“Duração e frescor andam juntos”
“Como resolvi meu problema de odor intimo”
“Madame, mantenha-se fresca”
“Toda mulher adora Chanel N°5”
“O que faz uma garota tímida ficar intima?”
“Femme, este nome é por sua causa”


O que todos estes anúncios
e todas as revistas masculinas
pareciam sugerir
era que se você, ao menos,
fosse suficientemente narcisista,
se tomasse os devidos cuidados
com seu odor, seus cabelos,
peitos, cílios, axilas,
sua região púbica,
seu horóscopo,
suas cicatrizes
e com a escolha da marca
do uísque no bar

– haveria de encontrar
um homem rico, bonito,
poderoso e potente
que satisfaria cada desejo seu,
preencheria todos os buracos,
faria seu coração dar um salto
(ou parar de bater),
a faria sonhar
e a levaria até a lua
(de preferência sobre asas diáfanas),
onde você viveria
totalmente feliz para sempre.

E o aspecto mais doido
disso tudo era que,
mesmo se você fosse inteligente,
mesmo que passasse sua adolescência
lendo John Donne e Shaw,
mesmo que estudasse
história ou zoologia ou física
e esperasse dedicar a vida
seguindo alguma carreira difícil
e cheia de desafios

– ainda assim teria a cabeça cheia
daquelas baboseiras
a que toda ginasiana se entregava.

Não faria diferença
se o seu QI fosse 170 ou 70,
você não escapava da lavagem cerebral.

Apenas a aparência exterior era diferente.

Apenas o papo era um pouco mais sofisticado.

Por baixo de tudo,
você sonhava em ser
aniquilada pelo amor,
ser suspensa no ar,
ser preenchida
por um pau gigantesco
jorrando esperma,
espuma de sabão,
sedas e cetins e, é claro,
dinheiro.

Ninguém se preocupava em lhe dizer
como era o casamento realmente.

Você nem possuía,
como as moças européias,
uma filosofia de cinismo e praticidade.

Você esperava não desejar outros homens
após o casamento.

E esperava que seu marido
não desejasse outras mulheres.

Então, os desejos surgiam
e você se via tomada pelo pânico
do auto-desprezo.

Como podia ser tão má?

Como podia continuar
apaixonando-se por homens estranhos?

Como podia ficar
observando dessa forma
o volume que crescia
dentro das calças deles?

Como podia participar de uma reunião,
imaginando a maneira de trepar
de cada um dos homens da sala?

Como podia viajar num trem,
fodendo homens estranhos com os olhos?

Como podia fazer tudo aquilo
com seu marido?

Alguma vez alguém lhe disse
que talvez aquilo
não tivesse nada
absolutamente a ver
com o seu marido?

E o que dizer daqueles outros anseios
que o casamento sufocava?

Aquela vontade
de cair na estrada de vez em quando,
de descobrir se você ainda
conseguiria viver sozinha
sem sua própria cabeça,
descobrir se você
conseguiria sobreviver
em uma cabana no bosque
sem enlouquecer,
descobrir em suma,
se ainda era uma pessoa inteira
após tantos anos sendo
a metade de algo

(como o parceiro que faz
as patas traseiras
de uma fantasia de cavalo
no teatro de variedades).


Cinco anos de casamento
haviam me feito comichar
por todas essas coisas:

comichar por homens,
comichar por solidão.

Sentia cócegas por sexo
e por uma vida reclusa.

Sabia que essas comichões
eram contraditórias –
e aquilo tornava as coisas piores.

Sabia que minhas comichões
eram anti-americanas –
o que tornava as coisas ainda piores.


Nos Estados Unidos,
é heresia adotar qualquer modo de vida
que não seja como a metade de um casal.

A solidão é anti-americana.

Pode até ser tolerada num homem
– em especial se ele for
um “solteiro glamouroso”
que “sai com aspirantes a estrela”
durante um breve intervalo
entre casamentos.


Mas se uma mulher é sozinha,
sempre se presume
que é por ter sido abandonada
e não por sua escolha.

E ela é tratada de acordo:
como paria.


Simplesmente não existe
uma maneira digna
de uma mulher viver sozinha.


Oh, ela pode ser
bem-sucedida financeiramente,
talvez (embora não tanto quanto um homem),
mas emocionalmente nunca é deixada em paz.

Seus amigos, sua família,
seus colegas de trabalho,
nunca a deixam esquecer
que o fato de não ter um marido,
de não ter filhos
– seu egoísmo, em suma - ,
é uma afronta
para o modo de vida americano.

Mais exatamente: a mulher
(mesmo sabendo como suas amigas casadas são infelizes)
não pode nunca ficar sozinha consigo mesma.

Vive como se estivesse constantemente
a beira de alguma grande realização.


Como se estivesse esperando
que o Príncipe Encantado
a carregasse para longe “ de tudo aquilo”.

Tudo o que?

A solidão de viver dentro
de sua própria alma?

A certeza de ser ela mesma
e não a metade de outra coisa?

Minha resposta a tudo aquilo
não era (ainda não)
ter um caso
e nem (ainda não)
cair na estrada,
mas desenvolver minha fantasia
da foda sem zíper.

Que seria mais do que uma foda.

Era um ideal platônico.


Sem zíper,
pois quando dois se juntavam,
os zíperes se abriam
como pétalas de rosa,
roupas de baixo
se desmaterializavam a um sopro
como felpas de dente-de-leão.

Línguas se entrelaçavam
e tornavam-se liquidas.


Toda sua alma
se escoava para entrar
pela boca de seu amado.

Para a verdadeira e definitiva
foda sem zíper de primeira classe,
era necessário que você não viesse
a conhecer o homem muito bem.

Eu havia notado, por exemplo,
que todas as minhas paixonites
se dissolviam tão logo eu me tornava
realmente amiga de um homem,
começava a compreender seus problemas,
ouvia seu “kvetch” ( Iídiche = queixa )
com relação a esposa
ou as ex-esposas,
a mãe, aos filhos.

Depois disso,
passava a gostar dele,
talvez até a amá-lo
- porém sem paixão.


E o que eu queria era paixão.

Também havia aprendido
que um modo certeiro
de exorcizar uma paixão
era escrever a respeito de alguém,
observar seus tiques e cacoetes,
anatomizar sua personalidade
no texto datilografado.

Depois disso,
ele se transformava num inseto
preso por um alfinete,
num recorte de jornal plastificado.

Eu poderia apreciar sua companhia,
até admirá-lo em algumas ocasiões,
mas ele já não tinha o poder
de fazer-me acordar tremula
no meio da noite.

Eu não mais sonhava com ele.

Ele já tinha um rosto....


Érica Jong – no livro Fear of flying (Medo de voar)




É isso?
então, sem medo de voar meu amor...
antoniOCarlos
Fevereiro
2010


"O amor comeu
minha paz e minha guerra.
Meu dia e minha noite.
Meu inverno e meu verão.
Meu silêncio,
minha dor de cabeça,
meu medo da morte."

João Cabral de Melo Neto


Frase do dia: Se não queres perder-te no esquecimento logo ao morrer, ou escrevas coisas dignas de ler-se ou faças coisas digna de escrever-se.


Música : Julio Iglesias & Dalida- La Vie En Rose

Um comentário:

  1. É algo ultra real esse texto. Remete a vários questionamentos.
    Abraços

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