terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Sombra dos olhos





Sombra dos olhos



Isso é muito pouco!

Ele gritou,
tão alto e tão grave
que ela sentiu
toda a raiva
de seus pulmões cansados.

Cansados de tudo.

Da idade,
da fumaça do cigarro,
do ar condensado de mágoa,
do silêncio,
da indiferença,
do abandono.


Ao ouvir isso,
ela apenas o olhou
por entre as sobrancelhas
com ar de pena,
soltando da boca
uma nuvem branca de tédio
que subiu até o teto
de madeira entalhada
em rococó.

Perfeito como foi no início.

Contaminado de desgosto,
ele contemplou longamente
aquela mulher.


Vendo seus olhos
pintados
de sombra cintilante
e o cabelo ajeitado
num penteado duro
como seu olhar,
lembrou-se de quando
ela lhe disse
pela primeira vez
que o amava.

Em seus olhos
não havia sombra.

Ao contrário.

Brilhando a luz do Sol,
as pupilas não eram negras,
mas douradas,
da cor do compromisso
na mão direita.

Os dias se passavam
como horas,
e cada hora
longe um do outro
pareciam dias.

Sempre juntos,
já não se sabiam
mais divididos.


Quando veio o outono,
o frio chegou cedo demais
e atacou a plantação
e os negócios da família.

E, como não bastasse,
ele começou a sentir
suas mãos leves demais,
tremulando inconstantes
feito as folhas secas que via,
através do vidro,
desprendendo-se
dos galhos de salgueiro
no jardim.

Foi quando ele percebeu
que o olhar dela
tornara-se opaco.

Enquanto se perdia
de tudo e de si,
também a perdia.

Certa manhã,
ela sentou-se ao lado dele
para o café numa proximidade
infinitamente distante.

No salto-agulha,
os pés dela alfinetavam,
assim como os da cadeira,
o antigo tapete vermelho,
agora desbotado,
cor de carne sem sangue.

Meia hora em que ela
apenas mordia,
sorvia
e engolia sons.


Ao fundo, ele só ouvia
a vibração do ar
entrando e saindo
de seus pulmões,
quase sufocado pelo peso
dos próprios pensamentos.


Ali, naquele instante,
ele notou pela primeira vez
aquela sombra pérola
nos olhos dela.

E ela já não era tão bonita.


Estrela apagada,
tentava refletir alguma luz
no brilho em pó
sobre as pálpebras mirradas.

No rosto marcado da mulher,
ele lia os anos que passaram juntos,
como em um álbum de família.

Recordava
os tempos bons,
revivia-os.


Escondia-se dela e de si
na lembrança.


Naquela noite de inverno,
em frente à lareira,
sentiu-se asfixiado
de um completo vazio.

Uma pessoa
-copo-plástico,
descartável.

A sala havia
se tornado imensa
para conter
sua presença esmigalhada,
mas minúscula
para abrigar
os escombros de vida
sobre seus ombros.

Ela não estava partindo
para economizar
os parcos tostões
que lhes sobraram,
deixando-o mais confortável.

Ao contrário,
estava deixando-o,
confortavelmente,
para não precisar mais
carregar aquele corpo
pesado e doente.

Não era nele
que ela pensava.

Mas ele sim pensava nela,
em tudo o que fez por ela.

Construiu forças sobre
os entulhos sentimentais
e as soprou
com todo o ar
de seu peito.

Ouvindo aquele grito
desesperado e profuso,
ela deixou escapar
seu último fantasma de fumaça,
depositou o resto
de cigarro ainda aceso
sobre o cinzeiro e,
mergulhada em si,
levantou-se e saiu.

Enquanto escutava
os pequenos passos
se afastando,
ele permaneceu calado,
observando
as fracas chamas na lareira.

Refletidas pelas gotas
de cristal do lustre,
elas se espalhavam
pela escuridão da sala
feito chagas.


Olhava,
mas não via o fogo
que quase se extinguia
naquela última
lenha velha,
queimando
o último pedaço,
assim
como
o cigarro
no
cinzeiro.


Sombra dos olhos ~ Michelle Horst


e é isso...
neste janeiro
de perdas
e ganhos
de sutilezas
e danos
de tesão
e abandono
de desejo
e amores profanos

e no entanto
permanecem
olhos que ainda
brilham
no pensamento
de um sol
que é você
mesmo que por fora
ainda estejam opacos
pelo tempo
que a gente
não se ve.




antoniocarlos
2o1o

Pensamento do dia: Em toda festa existem dois tipos de pessoas - aquelas que querem ir para casa e aquelas que não querem. O problema é que elas normalmente são casadas umas com as outras.

música : astor piazolla & gerry mulligan - years of solitude

Um comentário:

  1. é isso meu lindo...
    Cheios de propósitos são os olhos que se cruzam ou não, por acaso.
    No entanto...haviam estrelas no céu... noite anterior e o sol clareou a manhã. E como você mesmo diz: ... Mais??? pra quê?
    Te amo! beijos mil.

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